De
todos os sentimentos, acho que o perdão envolve tudo aquilo que é mais difícil
de se expressar. De fato, pedir perdão requer um exercício constante de
humildade e sensatez. Ainda assim, creio
que sentir o peso da própria consciência te acusando incessantemente pelo o que
você deveria ter feito ou evitado é uma tortura insuportável. Considero que
esta dualidade entre o arrependimento e a postura inerte ou impassível diante
da dor alheia represente justamente o abismo que existe entre as implicações de
uma ou outra postura na mente humana.
Certa
vez, tive a oportunidade de ouvir uma interessante história a qual insiste em
não sair de minha cabeça, contada por um desconhecido senhor de idade já
avançada enquanto eu visitava a casa de alguns parentes. Em linhas gerais, o
relato que me foi contado me fez analisar com mais atenção e afinco o que de
fato é o perdão .
Lembro
que aquele homem, embora simples e notadamente de pouco estudo tinha uma
sensível habilidade para contar histórias com vivacidade e emoção. Talvez fosse
a credibilidade passada por aqueles poucos cabelos brancos que lhe cobriam a
calvície. De todo modo, durante a maior parte do relato, tive a sensação de
presenciar o testemunho e ver a história sendo escrita. Acredito que em razão
disso, tenha me sentido tão próximo do ocorrido.
Tratava-se da figura de um sujeito
alto e de pele pálida. Um homem desempregado na casa dos seus 30 anos aparentemente
calmo e concentrado. Ainda me questiono como aquele ser poderia ter sido capaz
de cometer tamanha atrocidade. Sem dúvida, a natureza humana é repleta de
questões imponderáveis e imprevisíveis. Talvez essa fosse também a mesma
pergunta que aquele homem impunha a si mesmo. Buscar respostas não mudaria seu passado, mas,
com toda certeza, moldaria sua percepção do presente.
Olhar
para os lugares pelos quais passou e depositou parte de suas expectativas e
projetos o remetia a uma parte de si que adoraria preservar eternamente.
Infelizmente observar o lago e a paisagem que a circundava não traria mudanças
conclusivas em sua vida. É nostálgico analisar as possibilidades que poderia
ter trilhado e não trilhou, as pessoas que poderia ter se tornado, mas não se
tornou, entretanto, mesmo assim, sei que aquele homem gostava de dispor de
bastante tempo mergulhando em seus pensamentos obscuros em busca de pretensas
respostas.
No
cerne de toda sua introspecção, residia o câncer da culpa que o atormentava.
Desde que houvera cometido aquele crime, vivia em estado de constante
inquietação, negando-se, inconscientemente, qualquer forma de descanso a sua
consciência. Descobrira que todas suas palavras eram vazias de qualquer
conteúdo que pudesse lhe reconfortar.
O
sentimento de culpa era implacável. Inicialmente confrontado, buscou a negação
como forma de defesa, tal qual uma criança que busca a luz como proteção à
escuridão do quarto. Ainda sim, viu-se constantemente atormentado pelo peso do
remorso que carregava. Após inúmeras noites em claro, gradualmente começou a
perceber o fundo do poço a que chegara.
Negar a verdade era tão inútil quanto inventar seu próprio universo
paralelo.
Aceitar a verdade dos fatos, embora
trágica, o fez despertar para um sentimento de alívio em relação a si mesmo. Mesmo
sabendo que a culpa continuava alojada em sua mente, sentiu-se feliz por estar
lidando de modo mais maduro com seus problemas. Percebeu com isso, uma sensível
melhora em seu humor. Inevitavelmente viu sua negação transformar-se em
arrependimento. Ou seja, pela primeira vez em 11 anos, ousou assumir a culpa
que a tempos fazia questão de esconder.
Na prática, negação e arrependimento
eram palavras distintas que caracterizavam exatamente a mesma situação. Não foi
tão difícil àquele homem perceber que arrependimento sem reparação era tão
inútil quanto buscar se proteger da chuva usando apenas uma folha de papel. Era
necessário, de alguma forma, buscar consertar o erro e o sofrimento que causou
àquelas pessoas. Os 10 anos que passou na prisão foram necessários para quitar
suas dívidas com a sociedade, mas não com as suas vítimas. Pronto: estava
perfeitamente consciente de que era preciso pedir perdão.
Ainda hoje, flashes daquela dia incomum
o atormentavam. Conformara-se a dizer a si mesmo, nos últimos anos, que o
disparo que efetuou naquele dia foi acidental. Não gostava de rememorar a situação,
mas era constantemente assaltado pelas lembranças que buscava reprimir. Ao
longo dos anos, desesperadamente tentava realinhar a verdade dos fatos aos seus
pensamentos. Com esse intuito, imaginava centenas de condicionalidades que
poderiam ter sido evitadas para que aquele crime não tivesse ocorrido. Como se
de algum modo o “SE” pudesse alterar o rumo da história.
Infelizmente, a verdadeira vítima de
seus impulsos nunca poderia o perdoar, pelo simples fato de que havia morrido naquele
dia incomum. Era trágico admitir que fora capaz de matar alguém, sobretudo, uma
criança carregada de alegria. Entretanto, não admitia retrocessos em sua missão
de buscar reconforto interior, era preciso lidar com a verdade dos fatos, ainda
que não tivesse a menor certeza de onde isso poderia levar.
Sentado na varanda de sua casa alugada, raciocinava
formas de encontrar a família da vítima e pedir desculpas. Talvez isso fosse
interpretado como um grande ato de arrogância por parte dos familiares. Entretanto,
apesar do receio das incertezas que o aguardavam, acostumara-se a pensar que o
medo de sua culpa não ser perdoada era ainda maior. Já fazia 1 ano desde que
fora solto, era preciso encontrar um caminho em sua vida e livrar-se do peso do
passado obrigatoriamente deveria ser seu primeiro passo.
Era preciso esquecer que um dia fora
viciado em drogas e que perdera tudo o que possuía, sobretudo, que decidira
roubar um supermercado para reaver o conforto que tinha e finalmente, era
preciso esquecer que nesse assalto fora surpreendido por uma criança que
passeava pela rua e institivamente tinha atirado em sua direção. Nunca quisera cometer mal a ninguém, contudo,
sua vida tinha sido escrita através do fruto das constantes escolhas erradas
que tinha feito.
Ao passar de dois meses de incessantes
procuras, aquele homem finalmente conseguiu encontrar a casa da qual emanava o
sofrimento que ainda o perturbava. Sentiu-se tenso e amedrontado com o que
veria do outro lado da parede. Ainda assim, decidiu encher-se de coragem e
bater à porta. Como que impulsionado por uma força sobrenatural, começou a vomitar
todas as palavras que viera guardando nos últimos anos. Tentou não chorar e
expressar somente seu lado racional, mas foi inevitável. De repente, viu-se ali
chorando, a frente de uma casa qualquer e defronte a duas pessoas totalmente
desconhecidas que, à exceção de um infortúnio cometido há 11 anos, não teriam
qualquer ligação com ele.
Sim, deveria assumir seus erros e pagar
pelo o que fez, mas também acreditava que poderia ser perdoado. Relembrar a morte do filho causou desconforto
aos pais que se entreolhavam de forma embaraçosa. Não era fácil ser atropelado
por uma repentina lembrança de tristeza e mostrar benevolência diante disso.
Não era fácil deparar-se com o assassino da pessoa de quem você amava e não
sentir raiva por sua simples existência. Inicialmente, o homem viu espanto e
desprezo naqueles que o encaravam, mas, impassível, notou a sinceridade de seus
olhos ser captada por aquele casal. Muito provavelmente, seus próprios olhos
foram a fonte de seu principal argumento. Instantaneamente, observou as feições
daquelas pessoas transforem-se em compaixão e condescendência. Surpreendeu-se
com a repentina demonstração de afeto e imediatamente, sentiu-se liberto de tudo
que o pressionava quando os três se uniram num forte e demorado abraço
E olhando profundamente em meus olhos
aquele senhor encerrou sua história:
De
fato, pedir perdão não muda o passado, mas é um ato simbólico carregado de
significado capaz de remodelar sua percepção de si mesmo.
sorry seems to be the hardest word
Bonito texto.
ResponderExcluirRealmente, o perdão demonstra sensibilidade, humanidade e não é algo fácil de se fazer, visto que implica deixar o ego para trás, dar uma chance ao outro e a si mesmo, buscar a paz.
Novamente, muito bom texto. Parabéns!